Inspirados nos episódios do Cafécom Dungeon sobre XP (link), pretendemos com esse texto levantar uma problematização possível para pensar formas de premiar XP que sejam interessantes – quase como um “estudo de caso” de algo que tentamos empreender na Mesa Aberta de Península Ancestral.
Não estamos “tentando vender nosso peixe” ou dizer que “resolvemos o problema do XP!”: estamos tentando pensar junto, dar ideias que podem ou não ser uteis para outros jogadores, mestres e mesas.
O que é a Península Ancestral (PA)?
É uma “campanha semi-aberta” de
playtest do material das edições do Zine Península Ancestral que estão por sair,
já com 36 sessões jogadas. As aspas se referem ao fato de que jogamos com todas
as mecânicas de mesas abertas, mas apenas com 30 jogadores convidados – ao
invés de “entra quem quiser” – para facilitar o engajamento com o playtest e uma exploração mais aguda.
A PA é uma campanha experimental
em vários âmbitos: é um playtest do cenário, mas também roda em um sistema que
apelidei de “Caves&Hacks” por ser um Hack dos retroclones brasileiros –
D20age e Caves and Hexes. Esse último, inclusive, sendo um dos projetos que tenho
proximidade – muitas das ideias e adaptações desse Hack vieram das opções
ventiladas junto aos autores do Caves & Hexes.
Nesse Hack, diversas “Regras da
Casa” foram adicionadas ao chassi do BX para testar uma série de inquietações
sobre os “jogos artesanais de elfos”, provocadas por uma vasta bibliografia de
blogposts, podcasts, livros e retroclones do Old School e do Oil Fantasy
(alguns dos quais constam no fim desse texto).
XP por Feitos – e o que são “Feitos”
Na ficha do roll20 de cada
jogador (feita exclusivamente para a campanha pelo Cesar Machado) existe uma
tabela de 1d100 a ser preenchida. À medida que o personagem cumpre feitos heroicos
na ficção (roubar a serpe, matar a mantícora, completar uma peregrinação a um
lugar sagrado, etc...) ele deve anotar nessa tabela os feitos conquistados pelo
seu personagem.
A ideia surge de um post de LukeGearing, onde ele tenta criar uma tabela de reputação para os jogadores baseada
em suas ações dentro da ficção. Aqui, a proposta tem também esse caráter.
Mas há outro motivo:
Se em mesas abertas há o costume
de premiar XP por rumores trazidos à civilização e visita a pontos de interesse
espalhados na paisagem (XP por exploração, poderíamos dizer), na PA o que
pretendemos é construir uma mecânica de “XP por engajamento com o cenário”. Por
isso, cada vez que o personagem cumpre com um dos feitos, recebe 100*seu nível
pontos de XP. “XP por heroísmo construído”, poderíamos dizer.
Existem restrições, entretanto:
os feitos precisam ser atribuídos aos personagens dentro da ficção antes de
serem anotados na ficha (e premiados com XP). Para isso, existem 3 formas –
todas ligadas às tradições dos povos nativos da península ancestral que os
jogadores fazem parte: Poemas, Profecias e Promessas.
XP por Poemas
Ao retornarem de uma incursão, os
personagens podem procurar a Cronista da vila (uma espécie de Barda e uma das 3
classes sacerdotais do cenário). Se ela for convencida (as vezes exigindo
provas!) de algo heroico empreendido pelos personagens, esses personagens
ganham um feito.
Aqui, encontramos um motor para
as aventuras: “precisamos fazer coisas heroicas nas incursões para ganhar XP da
Cronista!”. O Registro “fama” do XP é privilegiado – poemas sobre você falam
diretamente sobre seu vulto pessoal como um dos heróis da península, e dispara
o gatilho mecânico padrão de evolução do personagem (o XP).
Cronistas diferentes podem
interagir diferentemente com os pjs na hora de premia-los, o que coloca a regra
mecânica (XP por feito) dentro de um registro de “regra ficcional” – para mais
sobre essas subdivisões, recomendamos a leitura do post de Sorensen e do artigo
científico de Montola, ambos na bibliografia abaixo.
Após 36 sessões da PA...
Nessa fase do playtest, já com 36
sessões “na manga” podemos afirmar que os jogadores desenvolveram o player
skill de sempre pensar em incursões focadas em objetivos heroicos para garantir
o prêmio dos poemas. Raros foram os momentos em que mais de um poema foi
escrito por uma mesma incursão, ainda que isso seja uma possibilidade.
A cronista do cenário, preocupada
também em “noticiar” o renascimento da vila da Fênix por meio de seus “corvos
correios”, não é muito criteriosa para criar novos poemas (escritos em rima com
a ajuda de IA), garantindo que esse XP seja quase garantido nas sessões.
XP por Promessas
Além da forma acima, os jogadores
tem a opção de “dobrar a aposta”: se direcionarem ao Teurgista (uma 2º classe
sacerdotal) e fazerem uma promessa de algum feito que pretendem executar.
A ideia se assemelha muito aos
“boasts” (bravatas) do Wolves Upon the Coast – um RPG de Luke Gearing, que se
encontra na bibliografia.
É uma aposta porque: a Teurgista
não aceita uma nova promessa antes que a anterior tenha sido cumprida – e as
vezes os jogadores ficam com “dívidas” por terem prometido algo que não
conseguiram executar.
Como nos outros casos descritos aqui, a objetividade da regra acaba ficando por parte da ficção: bravatas “meia boca” (“hoje vou entrar na Floresta”) não são aceitas pelo NPC - que se nega a aceitar promessas que entende como “abaixo do vulto dos personagens”.
Após 36 sessões da PA...
É o prêmio de XP mais arriscado,
tendo havido vários personagens que “prometeram e não cumpriram” e se
encontraram num lugar de ter que correr atrás do prejuízo. Também costuma não
ser declarada em incursões que tem objetivos mais difusos (“vamos explorar a
Floresta dos Entes...”) ou que estão muito simples (“vamos voltar para a
masmorra em busca de mais tesouros”)
XP por Profecias
Antes de uma incursão, os
personagens podem pedir a um Vidente (outra das classes sacerdotais) uma
profecia sobre um tema específico – normalmente relacionado à incursão
planejada. 1d6 é rolado, com 1-2 sendo uma profecia antecipando riscos, 3-4 uma
profecia dando informações gerais sobre o tema, e 5-6 uma profecia antecipando
recompensas.
Aqui, temos uma oportunidade de
conseguir informações, que pode ou não servir como fonte de XP a depender do
caso.
Novamente, a mecânica se aninha
com a ficção: se o grupo não consultar o Vidente, ou se o vidente não tiver os
insumos para produzir o Xarope do Oráculo (droga que permite a ele ter suas
visões), não haverá profecia.
Após 36 sessões da PA...
O Vidente se tornou mais ativo
recentemente, após os insumos se tornarem garantidos pelos próprios jogadores na
vila da Fênix (hub da campanha). Jogadores tem utilizado esse serviço para
terem alguma ideia do que estarão enfrentando, e em alguns casos não
conseguiram cumprir com a profecia e ganhar o feito – já que muitas vezes o
enredo que ela descreve exige mais do que eles conseguem abocanhar. Não há
penalidade por não cumprir com uma profecia.
Em partes graças a essa
constatação, definimos na segunda temporada que as profecias agora só servem
para coleta de informações: pede-se uma profecia tentando prever o que será
encontrado em dado curso de ações. Não há mais rolagem sobre o caráter da
profecia – as informações colhidas vêm de forma difusa e poética, quase como
uma charada.
Entendemos que a informação já é
uma vantagem ficcional boa o suficiente. Mais que isso, a geração da profecia
(novamente em rima, com a ajuda de IA) acaba servindo como uma forma de
oráculo, informando cenas e descrições do mestre sobre o que é encontrado na
incursão.
XP por Fama – o XP por tesouro gasto
Além dos feitos, que alimentam 2
sistemas ao mesmo tempo (a tabela de reputação e a evolução vertical por XP),
uma última forma de evolução mecânica se dá pela regra do XP por tesouro gasto:
Todo tesouro que for gasto sem
benefício próprio direto se transforma em XP. Nesse caso, são válidos gastos com “carousing”,
doações, construção de coisas de utilidade pública para a vila, gastos com
treinamento sem outro fim que não o XP, compra de livros e afins.
Esse XP por moeda é uma forma de
não desarticular o chassi do BX, todo ele pautado em torno desse motor central
de XP por ouro.
Então porque não manter o XP
por tesouro resgatado?
Dois motivos principais:
- A PA é uma campanha anticolonial.
Nesse sentido, evita estabelecer incentivos diretos a ações de pilhagem e roubo
– isso é coisa que os inimigos da campanha (O Império) fazem. Não estamos aqui
tentando incentivar um jogo ético – leia o texto de Zideck Siew na bibliografia
para problematizar essa questão – mas sim mudar o fluxo de onde as moedas valem
XP, tentando evitar assim que o XP por feitos seja preterido em favor da
simples pilhagem.
- Privilegiar uma antecipação do
“jogo em tier 2”, como se costuma descrever o jogo de investimento em fortes
e/ou cidades que acaba acontecendo a partir de determinado nível no D&D
Clássico, quando os jogadores já acumularam riquezas. Isso antecipa o
envolvimento dos jogadores com as facções, e evita o gatekeeping padrão do
D&D clássico, onde ter um templo, torre, forte era coisa que você só
poderia depois do “name level”.
Após 36 sessões de PA...
Os jogadores tendem a guardar
seus tesouros, gastando-os todos de uma vez quando estão perto o suficiente de
subir de nível. Assim, tem reservas para caso precisem fazer gastos com
equipamento, treinamento e contratação de seguidores. Ao guardar esses tesouros,
acabam percebendo sem querer que as outras premiações de XP (por feitos heroicos)
são mais proveitosas do que a premiação por riqueza. “Ser ao invés de ter”.
Todo RPG é político (veja texto de Prismatic Wasteland, na bibliografia), e
toda ação sempre tem um viés ético, no final.
Um outro fenômeno tem se tornado
cada vez mais comum nas ultimas sessões: quando um dos jogadores está perto de
subir de nível, personagens mais abastados costumam doar moedas para ajudar o
amigo a upar e ir para a incursão melhor preparado. No caso do Mago (só um
jogador usa feitiços arcanos), as doações de outros jogadores também acontecem
para garantir seus estudos e investimento no grimório comunitário da vila.
• • •
Post Scriptum – Sobre o caráter ético/moral das regras de XP
Com alguma razão, muitos podem
dizer que o XP por ouro é uma regra de alguma forma apolítica ou mesmo amoral.
A razão que se usa costuma se desenrolar do fato de que o ouro pode ser
conseguido de formas éticas ou não, produzindo um motor de XP que é neutro de
alguma forma.
Discordamos desse argumento.
Entendemos que a valorização do
dinheiro e do enriquecimento é em si um ponto poderoso de uma forma de pensar
profundamente capitalista – tão profundamente enraizada que parece ser
imparcial.
Os jogos artesanais de elfo,
diga-se de passagem, pretendem emular uma sociedade pré capitalista (e a
Península Ancestral é baseada na idade do Ferro, ainda mais atrás na
história!). Para discutir esse “anti medievalismo” de um jogo de fantasia
medieval, leia o texto do Blog of Holding na bibliografia.
Por outro lado, temos argumentos
de que uma ação ética só é realmente ética se desdotada de ganhos pessoais,
como no texto de Zideck Siew da bibliografia.
Novamente, descordamos.
Enquanto doutor em psicologia e
profissional de saúde atuante no SUS, importa dizer a importância dos ganhos
pessoais (ainda que não sejam materiais) nas ações que visam o bem alheio: à
pessoa que faz tais ações, sempre resta algum ganho – mesmo que seja subjetivo.
“Se entender como uma boa pessoa”, “agir por um mundo melhor”, ou mesmo “ganho
de status pelo reconhecimento social da boa ação” são respostas óbvias para as
ações de cunho ético.
Há inclusive bastante discussão
em torno da ideia de que os bons feitos muitas vezes são empreendidos na
tentativa de se conseguir uma superioridade moral sobre os outros. É uma
discussão longa, da qual a figura do Paladino nas edições posteriores do Dungeons
& Dragons acaba sendo herdeiro: se escolhe ser paladino pelos bons atos, ou
pelos poderes que recebe graças aos bons atos? O paladino é mal visto por
“podar o jogo alheio”, ou ele realmente age com base nessa suposta
superioridade moral perante aos outros, tratando-os de forma infantilizada ou
inferiorizada?
Por fim, vale ressaltar algo
muito central: não existe posição apolítica, ou mesmo alheia à moral e à ética:
se colocar “em cima do muro” é se colocar para fora do debate sobre o assunto.
É deixar pros outros decidirem. É perder por abstenção.
Nesse sentido (a inerente e
subliminar relação ética de toda ação, RPG ou regra; mas também a
impossibilidade de agir de forma concretamente imparcial) nos motivou a moldar
o máximo possível as regras para que haja sim uma resposta mecânica à proposta
de game design (um jogo de PJs colonizados contra seus colonizadores), ainda
que reste esse eco distante dos jogos padrão de D&D: tesouro ainda pode ser
XP, se utilizado em prol da coletividade dos jogadores, encarnada na Vila da
Fênix (o Hub do cenário, mas também um Forte/Stronghold coletivo dos
jogadores).
Conclusão
Ao que tudo indica, conseguimos estabelecer um bom sistema de recompensas e “score” (o XP sempre acaba sendo um tipo de “pontuação do jogador” no jogo) que leva em consideração a evolução do personagem e mantem minimamente a evolução vertical intacta (os personagens estão demorando em média 4-5 sessões para passar de nível).
- Críticas do gênero “tirar o XP por ouro desmonta o D&D clássico” parecem ter sido sanadas pela mudança para XP por ouro gasto.
- Os objetivos de Design (tirar a recompensa de comportamentos potencialmente predatórios e colonialistas) foram respeitados, à medida que se recompensa outros tipos de ações.
- O “chamado pela aventura” que o XP por tesouro resgatado promovia foi potencializado pelo XP por feitos.
- A mudança do XP como “contagem de dinheiro resgatado” para XP como “score do impacto no cenário” foi boa e interessante em termos de engajamento e impacto ficcional.
- A regra objetiva (100xp/ nível do personagem para cada feito) e sua interface ficcional (esse feito/XP é conseguido na relação com NPCs) introduziram formas bem menos arbitrárias de se premiar XP do que os milestones, xp por participação, boa interpretação e afins.
Sem mais para o momento,
esperamos que o texto acima sirva de inspiração, reflexão ou que possa te
ajudar a “melhorar seu jogo”. Se não, apenas ignore o que leu e continue
jogando do seu jeito. Ninguém vai morrer.
Ah! E lembrem de baixar gratuitamente
o pdf das 2 edições s Península Ancestral em https://peninsulancestral.itch.io/, ou comprar pela CarameloJogos (AMBOS OS NUMEROS ACABARAM DE SER REIMPRESSOS!). Se curtir o material,
mandem uma doação para continuarmos produzindo o zine!
Bibliografia
Café com Dungeon – Mérito e Recompensa
https://open.spotify.com/episode/3h0YhEHUU7yWxHa2cVxTrA?si=XlJAnGvrRTONDnfBDkPfUA
Café com Dungeon – Ajustando o XP
https://open.spotify.com/episode/6yWTnjwqQ0ojsy9xqRL6J7?si=hXsvh8pqQ0e4kd0JUm3Lyw
Sam Sorensen - Quais Regras Ocultam?
https://samsorensen.blot.im/which-rules-elide
Zedeck Siew’s Writing Hours – Decolonizando o D&D https://slowlorispress.com/post/742000720927227904/decolonising-dd
Zedeck Siew’s Writing Hours – Como jogar a Revolução
https://tmblr.co/ZTYnyufFRPnw0W00
Zedeck Siew’s Writing Hours – (Não) Incentive o jogo
ético https://slowlorispress.com/post/742713305722961920/dont-incentivise-ethical-behaviour
Goobernuts’ Blog – Vou colocar Colonizadores no meu
cenário
https://goobernutsblog.wordpress.com/2021/06/22/im-adding-colonizers-to-my-setting/
Prismatic Wasteland - RPGs apoliticos não existem
https://www.prismaticwasteland.com/blog/apolitical-rpgs-do-not-exist
Contra os Incentivos - Luke Gearing
https://lukegearing.blot.im/against-incentive
Tabelas de Reputação - Luke Gearing
https://lukegearing.blot.im/reputation-tables
Wolves upon the Coast – Luke Gearing
https://lukegearing.itch.io/wolves-upon-the-coast-grand-campaign
Blog of Holding – d&d is anti-medieval
https://www.blogofholding.com/?p=7182
Nenhum comentário:
Postar um comentário