Na campanha oficial de playtest de Península Ancestral, decidi experimentar um esquema um pouco diferente: todo jogador pertence à mesma “classe”.
Arte do Viajante por Carlos Castilho
(Se todo mundo tem a mesma
classe, existe classe? Fica a reflexão. #problematizaçãochique)
Apesar disso, os personagens
ainda têm bastante variação. Cada jogador rola numa tabela de d66 origens,
que define profissões, classe social ou até traços sobrenaturais. Mas, em
termos de “chassi”, todos partem do mesmo ponto:
- As salvaguardas são iguais.
- Ao subir de nível, o jogador escolhe o que quer
melhorar na ficha (Ataque, Salvaguardas, Perícia ou Slots de Magia).
Se quiser entender o
funcionamento, a classe Viajante está explicada na PenínsulaAncestral #2!
Essa decisão não é só “invenção
de moda” – é uma escolha de design. E, pra explicá-la, preciso fazer um
desvio importante…
Ficção Primeiro: Por Que Isso Importa
Pra entender essa escolha,
precisamos falar sobre imersão, plausibilidade e como o jogo lida
com aprendizado.
Quando deixei de jogar os “D&D
modernos” (3.5, 5e) e comecei a explorar os jogos Old School e
produções mais artesanais, percebi que alguns incômodos antigos meus sobre
evolução de personagens eram parcialmente resolvidos — mas não todos.
O problema sempre foi o mesmo: a
evolução mecânica nem sempre fazia sentido dentro da ficção. Por exemplo:
- Como o personagem aprendeu a lutar com armas de
haste se passou toda a campanha usando espada?
- Como um paladino “pega nível” de bruxo sem
nunca ter feito o pacto necessário?
Nos D&D modernos, entendo a
lógica por trás disso: XP → subir de nível → ganhar habilidades legais.
Mas, do ponto de vista da ficção, sempre soou estranho.
Nos jogos Old School, a
situação muda um pouco:
- Cada classe tem habilidades fixas,
aprendidas no passado.
- As únicas evoluções são marginais — como magias
mais poderosas para conjuradores.
Isso resolve parte da
inconsistência, mas não completamente. Afinal, nem a abordagem moderna nem a
old school são verossímeis.
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Verossimilhança Gera Imersão
“Mas RPG é fantasia, pode ter
dragões e magos!” — sim, claro. Mas um princípio importante de design que
aprendi é que quanto mais plausíveis são as regras internas, mais
imersivo o jogo se torna.
E o problema das abordagens
tradicionais é que elas não refletem bem como aprendizado funciona na vida
real.
Tanto as ciências humanas quanto
as biológicas mostram que nossas habilidades não são 100% inatas. A
genética pode predispor características, mas raramente é determinante. A
maior parte do que sabemos e fazemos é aprendida, transmitida pelo
convívio, pela prática e pela experiência.
Por isso, pensar personagens com trajetórias
de aprendizado, em vez de “talentos inatos” ou “caminhos pré-determinados”,
gera um jogo mais orgânico e verossímil.
Por Que o Sistema Tradicional de Evolução Quebra a Imersão
Nos sistemas modernos, o
aprendizado do personagem é descolado da ficção:
- Você sobe de nível → ganha um talento → pronto.
- Mas o como você adquiriu essa habilidade
quase nunca importa.
Além disso, existe pré-determinação:
- Seus talentos, perícias e multiclasses já vêm de
uma lista pré-definida.
- Você pode escolher dentro do trilho, mas
raramente fora dele.
Minha pergunta era: e se a
evolução fosse realmente pautada pela ficção?
E se, para aprender algo novo, o personagem precisasse viver isso na
narrativa — treinar, estudar, buscar mentores, fazer pactos, estudar
grimórios?
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Os 3 Registros do RPG
Pra aprofundar essa discussão,
recomendo o texto de Markus Montola: As Regras Invisíveis do Roleplaying.
Ele explica que um jogo de RPG acontece simultaneamente em três registros:
- Exógeno → o nível fora do jogo:
pessoas sentadas na mesa, conversando, rolando dados, negociando limites.
- Endógeno → o nível mecânico: regras,
fichas, rolagens e tabelas (“espadas causam 1d8 de dano”).
- Diegético → o nível ficcional: o “faz
de conta”, as regras internas do mundo (“só cavaleiros podem portar espadas
longas”).
Os D&D modernos priorizam o endógeno.
Eu prefiro priorizar o diegético.
Minha meta é: colocar o crescimento dos personagens dentro da história —
não no metajogo.
Quando a Regra Encobre a Ficção
Um exemplo rápido, inspirado no
texto Which Rules Elide?:
- Abstraindo pela mecânica: “Rolo percepção e
tirei 23, logo sei o que tem na sala.”
- Priorizando a ficção: “Entro na sala e
examino teto e paredes, apalpando tijolo por tijolo atrás de passagens
secretas.”
No primeiro, a narrativa some
atrás da mecânica.
No segundo, a história
acontece. Isso é mais imersivo.
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A Classe Viajante e o Aprendizado
É aqui que entra a classe
Viajante, que serve como espinha dorsal de Península Ancestral.
O Viajante tem uma única
habilidade: Aprendizado. Ele não começa com poderes inatos nem
habilidades fixas — ele aprende na ficção.
Quer se tornar um mago?
→ Encontre um mentor, estude,
entre numa escola de magia.
Quer ser clérigo?
→ Faça seus juramentos no templo,
viva essa experiência.
Isso gera duas consequências
importantes:
- Customização pela narrativa – Cada
personagem será único, não pela ficha, mas pelas vivências, escolhas e
oportunidades dentro do jogo.
- Treinamento como parte da história – As
habilidades não vêm “no pacote da classe”: elas são adquiridas jogando.
Em outras palavras: o heroísmo
não é garantido, ele é construído. Não vem da tabela de XP, vem das
escolhas e conquistas do personagem.
E, pra mim, essa é a melhor forma
de criar imersão: fazer com que cada mago seja um mago diferente, que cada
guerreiro tenha sua própria história, que cada habilidade seja uma
conquista dentro da ficção.
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Nota do editor:
Península Ancestral é um projeto independente produzido pelo Diálogo Ficcional, de autoria de Guilherme Providello, com edição e layout de Ícaro Agostino e artes de Geraldo Marinho, além de diversos outros colaboradores (artistas e autores convidados, revisores, tradutores e etc).
Se trata de um cenário de Hexcrawl artesanal, cooperativo e inpirado na Idade do Ferro.
Já temos duas zines publicadas, as versões digitais são gratuitas (ainda que você possa doar algum valor) e podem ser baixadas aqui:
As versões físicas são publicadas em parceiria com a Caramelo Jogos e podem ser adquiridas aqui:
Que legal! Acho que o Cairn oferece o avanço também pela narrativa. Acho que o problema nisso quando proposto pelo sistema e não pela mesa, como seu caso, é que precisa de uma certa robustez de ferramentas para que todos entendam como é o desenvolvimento dos personagens. Achei ótima a ideia e ficarei atento caso publique mais atualizações sobre o "experimento".
ResponderExcluirMassa demais! Inclusive, esse arquétipo do "aventureiro" conceitualmente mais genérico deveria ter se tornado classe básica em jogos D&D-like tem é chão!
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