domingo, 31 de agosto de 2025

Península Ancestral e a Classe Viajante

Texto escrito por Guilherme Providello,
autor do cenário Península Ancestral

Na campanha oficial de playtest de Península Ancestral, decidi experimentar um esquema um pouco diferente: todo jogador pertence à mesma “classe”.

Arte do Viajante por Carlos Castilho

(Se todo mundo tem a mesma classe, existe classe? Fica a reflexão. #problematizaçãochique)

Apesar disso, os personagens ainda têm bastante variação. Cada jogador rola numa tabela de d66 origens, que define profissões, classe social ou até traços sobrenaturais. Mas, em termos de “chassi”, todos partem do mesmo ponto:

  • As salvaguardas são iguais.
  • Ao subir de nível, o jogador escolhe o que quer melhorar na ficha (Ataque, Salvaguardas, Perícia ou Slots de Magia).

Se quiser entender o funcionamento, a classe Viajante está explicada na PenínsulaAncestral #2!

Classe viajante na zine Península Ancestral #2

Essa decisão não é só “invenção de moda” – é uma escolha de design. E, pra explicá-la, preciso fazer um desvio importante…

Ficção Primeiro: Por Que Isso Importa

Pra entender essa escolha, precisamos falar sobre imersão, plausibilidade e como o jogo lida com aprendizado.

Quando deixei de jogar os “D&D modernos” (3.5, 5e) e comecei a explorar os jogos Old School e produções mais artesanais, percebi que alguns incômodos antigos meus sobre evolução de personagens eram parcialmente resolvidos — mas não todos.

O problema sempre foi o mesmo: a evolução mecânica nem sempre fazia sentido dentro da ficção. Por exemplo:

  • Como o personagem aprendeu a lutar com armas de haste se passou toda a campanha usando espada?
  • Como um paladino “pega nível” de bruxo sem nunca ter feito o pacto necessário?

Nos D&D modernos, entendo a lógica por trás disso: XP → subir de nível → ganhar habilidades legais. Mas, do ponto de vista da ficção, sempre soou estranho.

Nos jogos Old School, a situação muda um pouco:

  • Cada classe tem habilidades fixas, aprendidas no passado.
  • As únicas evoluções são marginais — como magias mais poderosas para conjuradores.

Isso resolve parte da inconsistência, mas não completamente. Afinal, nem a abordagem moderna nem a old school são verossímeis.

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Verossimilhança Gera Imersão

“Mas RPG é fantasia, pode ter dragões e magos!” — sim, claro. Mas um princípio importante de design que aprendi é que quanto mais plausíveis são as regras internas, mais imersivo o jogo se torna.

E o problema das abordagens tradicionais é que elas não refletem bem como aprendizado funciona na vida real.

Tanto as ciências humanas quanto as biológicas mostram que nossas habilidades não são 100% inatas. A genética pode predispor características, mas raramente é determinante. A maior parte do que sabemos e fazemos é aprendida, transmitida pelo convívio, pela prática e pela experiência.

Por isso, pensar personagens com trajetórias de aprendizado, em vez de “talentos inatos” ou “caminhos pré-determinados”, gera um jogo mais orgânico e verossímil.

Arte interna da zine por Geraldo Marinho

Por Que o Sistema Tradicional de Evolução Quebra a Imersão

Nos sistemas modernos, o aprendizado do personagem é descolado da ficção:

  • Você sobe de nível → ganha um talento → pronto.
  • Mas o como você adquiriu essa habilidade quase nunca importa.

Além disso, existe pré-determinação:

  • Seus talentos, perícias e multiclasses já vêm de uma lista pré-definida.
  • Você pode escolher dentro do trilho, mas raramente fora dele.

Minha pergunta era: e se a evolução fosse realmente pautada pela ficção?
E se, para aprender algo novo, o personagem precisasse viver isso na narrativa — treinar, estudar, buscar mentores, fazer pactos, estudar grimórios?

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Os 3 Registros do RPG

Pra aprofundar essa discussão, recomendo o texto de Markus Montola: As Regras Invisíveis do Roleplaying.
Ele explica que um jogo de RPG acontece simultaneamente em três registros:

  1. Exógeno → o nível fora do jogo: pessoas sentadas na mesa, conversando, rolando dados, negociando limites.
  2. Endógeno → o nível mecânico: regras, fichas, rolagens e tabelas (“espadas causam 1d8 de dano”).
  3. Diegético → o nível ficcional: o “faz de conta”, as regras internas do mundo (“só cavaleiros podem portar espadas longas”).

Os D&D modernos priorizam o endógeno. Eu prefiro priorizar o diegético.
Minha meta é: colocar o crescimento dos personagens dentro da história — não no metajogo.

Quando a Regra Encobre a Ficção

Um exemplo rápido, inspirado no texto Which Rules Elide?:

  • Abstraindo pela mecânica: “Rolo percepção e tirei 23, logo sei o que tem na sala.”
  • Priorizando a ficção: “Entro na sala e examino teto e paredes, apalpando tijolo por tijolo atrás de passagens secretas.”

No primeiro, a narrativa some atrás da mecânica.

No segundo, a história acontece. Isso é mais imersivo.

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A Classe Viajante e o Aprendizado

É aqui que entra a classe Viajante, que serve como espinha dorsal de Península Ancestral.

O Viajante tem uma única habilidade: Aprendizado. Ele não começa com poderes inatos nem habilidades fixas — ele aprende na ficção.

Quer se tornar um mago?

→ Encontre um mentor, estude, entre numa escola de magia.

Quer ser clérigo?

→ Faça seus juramentos no templo, viva essa experiência.

Isso gera duas consequências importantes:

  1. Customização pela narrativa – Cada personagem será único, não pela ficha, mas pelas vivências, escolhas e oportunidades dentro do jogo.
  2. Treinamento como parte da história – As habilidades não vêm “no pacote da classe”: elas são adquiridas jogando.

Em outras palavras: o heroísmo não é garantido, ele é construído. Não vem da tabela de XP, vem das escolhas e conquistas do personagem.

E, pra mim, essa é a melhor forma de criar imersão: fazer com que cada mago seja um mago diferente, que cada guerreiro tenha sua própria história, que cada habilidade seja uma conquista dentro da ficção.

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Nota do editor:

Península Ancestral é um projeto independente produzido pelo Diálogo Ficcional, de autoria de Guilherme Providello, com edição e layout de Ícaro Agostino e artes de Geraldo Marinho, além de diversos outros colaboradores (artistas e autores convidados, revisores, tradutores e etc).

Se trata de um cenário de Hexcrawl artesanal, cooperativo e inpirado na Idade do Ferro.

Já temos duas zines publicadas, as versões digitais são gratuitas (ainda que você possa doar algum valor) e podem ser baixadas aqui:

🔗 [Digital] Península Ancestral #1 - O Planalto Imperial

🔗 [Digital] Península Ancestral #2 - A Floresta Sagrada

As versões físicas são publicadas em parceiria com a Caramelo Jogos e podem ser adquiridas aqui:

🔗 [Física] Península Ancestral #1 - O Planalto Imperial

🔗 [Física] Península Ancestral #2 - A Floresta Sagrada

2 comentários:

  1. Que legal! Acho que o Cairn oferece o avanço também pela narrativa. Acho que o problema nisso quando proposto pelo sistema e não pela mesa, como seu caso, é que precisa de uma certa robustez de ferramentas para que todos entendam como é o desenvolvimento dos personagens. Achei ótima a ideia e ficarei atento caso publique mais atualizações sobre o "experimento".

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  2. Massa demais! Inclusive, esse arquétipo do "aventureiro" conceitualmente mais genérico deveria ter se tornado classe básica em jogos D&D-like tem é chão!

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