O Novo Simulacionismo, publicado ano passado por Sam Sorensen, apresenta um conjunto de princípios no formato de manifesto, um texto direto e sucinto que aborda posturas para conduzir o jogo com foco no mundo ficcional. Antes de tudo, tenha em mente que o termo "Simulacionismo" aqui se distancia do conceito da teoria GNS de Ron Edwards, se apresentando como uma agenda distinta e “nova”.
Na intenção de destrinchar o texto a partir da leitura e reflexão, além da tradução, fizemos comentários ponto a ponto do manifesto na esperança de estimular discussões e reflexões; esses comentários são nossas percepções pessoais, sem a intenção de esgotar as diversas outras leituras possíveis.
Para ler apenas o manifesto na íntegra sem os comentários, 🔗 clique aqui.
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Texto original (em inglês) por Sam Sorensen. Disponível em itch.io ou diretamente aqui.
Tradução por Nicole Mattos, revisão e comentários por Renan S. e Ícaro Agostino.
Nota: abaixo o texto original está com recuo centralizado, os comentários sempre começam com # e estão em itálico.
Novo Simulacionismo
Um Manifesto
1. O mundo ficcional é soberano.
Em tudo que você fizer, tenha certeza que o mundo ficcional venha primeiro. Se em algum momento qualquer aspecto do jogo começar a colidir com a veracidade e a verdade do mundo ficcional, mude o que está fazendo.
Em cada arbitragem, cada regra, cada encontro, cada momento - o mundo ficcional impera. Ele não pode ser sobrepujado.
# O Mundo Ficcional (termo que aparece diversas vezes) se refere ao espaço imaginado onde o jogo acontece, é o mundo fictício, a simulação. Esse mundo tem suas próprias leis naturais, que podem ser fantásticas ou não, mas que fazem sentido em uma verossimilhança estabelecida.
Considerar o mundo ficcional soberano é pensar no que faz sentido dentro da lógica interna do mundo (verossimilhança) antes de estabelecer resoluções mecânicas. A ficção informa o jogar. As regras do jogo e os outros elementos servem à ficção.
Ex: Você criou uma vaca-voadora. Como consequência, todas as vacas do mundo devem voar também ou, se for uma exceção, o voo da vaca precisa ter uma justificativa que faça sentido dentro do mundo.
2. Restrinja os meios não-diegéticos em que o mundo pode ser alterado.
Personagens e sistemas podem, obviamente, afetar o mundo ficcional. À medida que eles se movem e agem através do mundo, o mundo muda e reflete essas ações. Essas mudanças podem ocorrer como resultado tanto do jogador quanto do mestre. Da mesma maneira, sistemas diegéticos* do mundo ficcional - leis, magia, clima, economia e outros - podem alterar o mundo também.
Fora as ações diegéticas de personagens, jogadores não podem alterar o mundo. O mundo é sagrado: ele é separado e não pode ser alterado, exceto pelas forças de dentro do mundo ficcional. Em momento algum o mundo deveria mudar só porque as regras ditam que sim.
*Diegético: Algo é diegético quando existe dentro do mundo do jogo.
# Aqui existe uma oposição ao uso de mecânicas que manipulam o jogo “de fora” da ficção, como, por exemplo, utilizar um ponto de protagonismo para inserir um elemento no ambiente. Se você quer inserir um elemento no ambiente, seu personagem deve fazer tal conjunto de ações que resultem nessa inserção.
O mundo ficcional só deve ser modificado por ações dos PJs, PNJ e por sistemas internos do mundo do jogo (como a lei, a magia, o clima, a economia, etc.).
Ex 1: O sistema diz que no nível 10 o guerreiro terá uma fortaleza. Se o guerreiro chegar ao nível 10 e a fortaleza não existir, ela não surgirá do nada. Se o guerreiro agir ativamente para construir/conquistar uma fortaleza e tiver sucesso, ele terá uma fortaleza mesmo que seja nível 1.
Ex 2: O sistema diz que uma armadura de placas deve custar 500 moedas de ouro. Se no mundo ficcional a armadura de placas for algo de difícil acesso, a economia interna do cenário pode fazer com que esse item custe mais do que 500 moedas de ouro. Se o jogador agir ativamente para conseguir um desconto ou facilitar o acesso e tiver sucesso, ele pode conseguir comprar a armadura por um custo menor.
3. O mestre é um árbitro, não um autor - ele também é subordinado ao mundo ficcional.
O mestre é um jogador. De acordo com isso, ele é impedido de usar sua habilidade não-diegética* para alterar o mundo, assim como qualquer outro jogador.
Se o mestre é também um autor, designer, e criador do mundo ficcional, ele deve aderir ao mundo ficcional criado antes do jogo começar. Uma vez na mesa, o mundo não pode ser alterado exceto por meios puramente diegéticos.
Quando você como mestre estiver na vontade emergente de alterar o mundo ficcional fora dos métodos diegéticos, resista à tentação! Conforme você muda o mundo ficcional, você nega aos outros jogadores da mesa a chance de jogar e ter um impacto genuíno no mundo. Garanta a confiança e a dignidade deles para tomarem suas próprias decisões.
*Não-diegético: Algo é não-diegético quando existe no mundo real dos jogadores e dos dados, e não no mundo ficcional.
# O manifesto separa funções de mestre e designer. A mesma pessoa pode realizar ambas as funções, porém as funções devem ser exercidas em momentos distintos. A ideia é respeitar o mundo preparado, alterar o mínimo possível quando na mesa.
O mestre, no momento do jogo, não é um autor que controla ou cria o que quer, mas sim um árbitro que ajuda a manter a consistência e a verossimilhança do mundo ficcional. O mestre joga com o que já foi criado pelo designer.
4. Regras, sistemas e mecânicas são abstrações do mundo ficcional, não estruturas ou ordens para os jogadores.
Todas as regras são abstrações de uma realidade grande e complexa. Elas existem para facilitar processos complicados em algo que possa ser mais facilmente jogado - e nada além disso.
Regras não são direcionamentos para como jogar. Não são ordens. Elas não são códigos de um sistema externo, como o arco narrativo ou a imagem de um gênero. Toda história é pós-hoc.
Quando o dragão chega a 0 PV e morre, isso não acontece porque chegou a 0 PV: ele morre porque levou tanto dano que não consegue continuar. As abstrações do seu jogo são representativas, não autoritárias.
# Toda história é pós-hoc: A história surge como produto do jogo após jogar, em vez de ser planejada antecipadamente pelo mestre e executada em mesa.
O autor utiliza “abstração” majoritariamente como sinônimo de regra, ele faz isso durante todos os outros pontos.
Você não precisa de mecânicas para jogar, conversar com um NPC e fechar um acordo sem rolar dados também é jogar, a proposta aqui é estender essa postura para todas as partes do jogo que importam mais.
Se o foco do jogo é a exploração de masmorras, você não precisa de uma mecânica para determinar qual corredor os personagens viram ou qual sala entram. Essa decisão acontece na interação com o mundo, no diálogo ficcional, sem abstrações.
5. Todas as abstrações devem justificar sua existência em oposição ao jogo não abstrato. Muitas abstrações são justificáveis.
O mundo ficcional é vasto e complexo. Cada abstração reduz parte dessa vastidão para algo gerenciável. A cada momento novo, se pergunte: “Essa abstração é melhor para o jogo do que simplesmente jogá-lo?”
Em muitos casos a resposta é “sim”. Cada jogo tem um foco diferente, e as regras devem ser construídas para melhorar esse foco. O mundo é enorme: não tenha medo de simplificar partes que importam menos.
Se o foco do jogo é, digamos, explorar um novo planeta, você pode achar útil abstrair o financiamento governamental do planeta mãe. Essa é uma parte relevante do mundo ficcional, mas é extremamente complicada e - criticamente - a maioria dessas complexidades é irrelevante para os exploradores. O que importa é o input (o que os exploradores precisam fazer para conseguir o financiamento) e o output (o quanto de financiamento eles conseguem). Os detalhes precisos de cada engrenagem do financiamento governamental são irrelevantes: abstraia.
Num jogo onde o foco é a exploração, entretanto, a exploração deve permanecer não abstrata.
# A reflexão proposta é interessante; escolher conscientemente o que interessa abstrair (resumir em regra/procedimento) e o que interessa detalhar, é uma conversa muito útil para ter em grupo.
Cada mesa de jogo vai encontrar seu foco, e o que estiver além disso pode ser mais abstrato. Não use um dado para adicionar aleatoriedade (quando não existir elementos na ficção que justifiquem isso) para consumir recursos em um jogo que o gerenciamento de recursos é importante!
Se o tempo de jogo é limitado, no que vocês têm interesse em usar esse tempo?
Ex: Vocês podem usar o tempo de jogo conversando com as pessoas da vila para conseguirem informações, ou resolver com uma rolagem sem muita interação; ou qualquer alternativa intermediária que faça sentido para os interesses da sua mesa. Qual seu foco?
6. Se suas abstrações não combinam com o mundo ficcional, desabstraia até combinar.
Se a qualquer momento as abstrações do seu jogo - as regras - não combinam com a realidade do mundo ficcional, mude-as. O mundo ficcional é soberano: abstrações podem sempre ser desabstraidas, mas o mundo ficcional não pode ser mudado a não ser que seja de dentro do mundo ficcional.
Atritos entre seu mundo e abstrações são normais e esperados durante o curso de qualquer jogo. Nenhuma abstração é mais valiosa ou mais importante que o mundo ficcional - mude-as à vontade.
# As regras servem o mundo, não o contrário.
Desabstrair é modificar ou excluir a regra para que ela combine com o mundo de aventuras. O autor defende que as abstrações devem ser usadas para agilizar partes que não são o foco do jogo, ajudando o foco a ir para onde a mesa quer. Se uma regra está atrapalhando mais do que ajudando, é sensato revisá-la.
Ex 1: Um sistema de pontos de vida onde o personagem com 1% de seus PVs é tão eficiente quanto quando está com 100% de seus PVs pode não ser condizente com um mundo ficcional de interesse da mesa. É possível que, diante da regra, a mesa mude o mundo para caber dentro da regra do sistema. O autor recomenda repensar essa abstração primeiro, ou seja, reformular a regra para que ela sirva à ficção.
Nesse caso, não use abstrações, o resultado de ficar perdido na escuridão deve acontecer como uma decisão não abstrata das escolhas dos jogadores.
7. Se você quer mudar seu jogo, mude seu mundo antes das abstrações.
Por conta do mundo ficcional ser soberano, esse é o aspecto mais importante do seu jogo. Quando você muda o mundo, você muda o jogo.
Se a mesa decidir em conjunto mudar o jogo, dê um passo pra trás e mudem o jogo juntos. Decida o que importa e o que não importa para seu jogo, e mude o mundo baseado nessa vontade.
As abstrações são todas secundárias. Inevitavelmente, conforme seu mundo muda, você perceberá que suas abstrações não combinam com o mundo ficcional. Quando isso ocorrer, desabstraia até elas combinarem. Então, conforme você jogar, reabstraia essas partes do jogo conforme elas forem sendo justificadas. Não se prenda as regras.
Em ponto algum o mundo ficcional muda como resultado de uma abstração prévia, ou alguma regra que precisa que sua presença seja sentida. Não tenha medo do livro de regras e nem do auto-coroado game designer.
# No ponto 6 é recomendado desabstrair regras que não fazem sentido no mundo. Aqui é uma situação diferente.
Se a abstração (regra) de fato tem sentido no mundo, mas mesmo assim se os jogadores (mestre incluso) estão incomodados com as consequências dessa regra, aí sim é o momento de modificar o mundo ficcional, pois provavelmente a coerência interna do mundo ficcional atual não satisfaz a demanda do grupo neste momento.
Como o mundo ficcional é soberano, quando ele muda, tudo precisa ficar alinhado com ele! Então, você refaz os pontos 5 e 6, refazendo a coesão do seu jogo.
8. Jogar é o foco do jogo. Jogar não é abstrato.
Abstrações são, pela sua própria natureza, mecanismos. Não jogáveis. Jogar em RPGs ocorre à margem das abstrações: elas são relevantes e impactantes, mas não onde o ato primário de jogar acontece.
Seu jogo deve focar em jogar, não em mecânicas.
# O jogar acontece além da ativação de mecânicas e rolagens de dados. Nessa proposta, as mecânicas são ativadas em função do jogar na interação com o mundo. Além disso, o autor reforça a importância de jogar de maneira diegética, esse ponto é um reforço de tudo o que foi dito nos anteriores.
9. O mundo ficcional não consegue ser perfeitamente simulado. Isso não significa que você não deveria tentar.
O mundo ficcional é infinitamente complexo. É impossível de realmente simular: nenhuma pessoa ou texto consegue imaginar a coisa toda. Nós somos limitados em entendimento por uma abundância de fatores, inconscientes até mesmo da nossa própria inconsciência. Nós permanecemos completamente ignorantes face à vastidão de conhecimento que compreende o mundo ficcional. É impossível de realmente simular.
Você deveria tentar de qualquer forma.
Esforce-se com ousadia em direção ao ideal platônico da simulação total! Busque pela maravilha de um mundo secundário completo! Aproxime-se dessas esferas distantes!
# Admite-se que o ideal de simulação perfeita e total não é possível, o que já era implícito no ponto 5, mas como toda utopia, serve para continuarmos caminhando nesta direção.
Uma interpretação possível do manifesto pode levar ao pensamento de "overprep" (excesso de preparação) em que o mestre na intenção de criar um mundo "completo" pode se afogar em um mar de detalhamento infinito que torna o jogo inviável.
Como o próprio texto sugere, esse ideal é impossível, parece uma boa prática então fazer o melhor dentro do limite de tempo com foco no que a mesa deseja "simular" sem abstrações, e claro, adotar as abstrações justificáveis para o restante. Com o tempo novos detalhes podem ser adicionados entre sessões com maior aprofundamento do mundo ficcional.
10. Jogadores vêm antes do mundo ficcional.
Em todos os sentidos, as pessoas com as quais você joga são mais importantes que o jogo. Sua comunidade é o fundamento de jogar. Nada importa mais.
# Um final com bom senso, lembrando o que importa de verdade. Pessoas são mais importantes do que o jogo, o óbvio às vezes precisa ser dito.
Ex: Se um dos jogadores tem aracnofobia isso é mais importante do que ter a floresta das aranhas no mundo ficcional.
Notas
Sam Sorensen
Abril 22, 2023. Revisado em Julho 2023.
Brooklyn, New York.Leitura adicional:
Boluk, Stephanie & Lemieux, Patrick // Metagaming
De Koven, Bernie // The Well-Played Game
Gearing, Luke // “Against Incentive”
Gearing, Luke // Volume 2 Monsters &
Huizinga, Johan // Homo Ludens
Huntsman, Vi // “Dread and Other Emotions”
Juul, Jesper // Half-Real
Milton, Ben & Lumpkin, Stephen // Principia Apocrypha
Peterson, Jon // Playing at the World
Rose, Noora // “The Tyranny of ‘Rule’”
Scott, James C. // Seeing Like a State
Sicart, Miguel // “Against Procedurality”
Sinclair, Jared // Anti-Sisyphus Omnibus
Sinclair, Jared // “‘Rules Elide’ and Its Consequences”
Sinclair, Jared // “The New Transparency”
Thriftomancer // Null
Wark, McKenzie // Gamer Theory
# Por fim o manifesto encerra com uma lista de referências, sugiro a leitura dos textos para aprofundamento, em especial os blog posts que são de mais fácil acesso.
Comentários finais
O manifesto Novo Simulacionismo não é um sistema, cenário ou conjunto de regras. É um manual de práticas, um conjunto de posturas que visa preencher lacunas no modo de jogar, orientar decisões sobre "como" uma mesa de RPG deve proceder em suas dinâmicas. Vários textos nesse sentido têm surgido nas últimas décadas e anos, como o Quick Primer, Principia Apocrypha, Blorb Principles, Muster e aqui no Brasil o Manifesto Oil Fantasy.
Pretendemos num futuro próximo trazer mais traduções e comentários desses outros manuais para fomentar discussões sobre teorias por trás do jogar.
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Se você usa twitter me segue lá pra gente trocar uma ideia sobre RPG! 🔗 twitter.com/icaroagostino
Achei interessante, principalmente pontos como o que diz que são as forças internas do mundo ficcional que devem alterar o jogo, não o contrário. Outras partes eu precisarei remoer melhor e ler mais sobre o tema, mas gostei bastante do XP.
ResponderExcluiro texto realmente é denso e precisa de reflexão para absorver, a gente comentou para tentar contribuir nesse entendimento. Obrigado pelo comentário =)
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