quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Vampiro - O Sistema Quebrado de Falhas Críticas

Vampiro a Máscara foi a porta de muitas pessoas para o hobbie, sendo um grande fenômeno no Brasil no final dos anos 90 e começo dos anos 2000. O jogo trazia um sistema bem diferente do tradicional D20, apresentando uma abordagem com rolagem de múltiplos dados de 10 faces para resolução de conflitos, o sistema denominado Storyteller teve seu auge aqui com na segunda e terceira edição de Vampiro, comumente chamadas de V2V3.

Arte interna Vampiro a Máscara 3ed, pág. 15

Esse post tem a intenção analisar esse sistema de resolução de conflitos com foco nas falhas críticas, que apresentam alguns problemas estatísticos, que muitos de nós nunca notamos ao jogar com um olhar inocente há mais de 20 anos atrás.

O Sistema Storyteller

O sistema utilizado pelos jogos da linha do Mundo das Trevas, que incluíam Vampiro e outros títulos famosos, apresentava uma proposta básica para resolução de conflitos baseado em testes com rolagem de múltiplos dados.

A estrutura básica do teste consiste em combinar um atributo e uma habilidade, o resultado desses dois aspectos somados é a quantidade de dados d10 que devem ser rolados, definida como “parada de dados”, contra uma dificuldade padrão 6 que pode ser alterada pelo narrador a depender da situação.

Um exemplo adaptado do V3 apresenta a seguinte situação: um Nosferatu tenta espionar atividades suspeitas sem ser percebido, o narrador então pede uma rolagem de Destreza + Furtividade (dificuldade padrão 6):

Destreza (nível 3) + Furtividade (nível 3) = Resultado -> 2, 4, 5, 5, 7, 9

Nesse caso o jogador teve 2 sucessos (7 e 9 alcançaram a dificuldade 6), é o suficiente para que ele consiga espionar sem ser percebido.

Se nenhum valor resultante alcançar a dificuldade, o jogador teve uma falha, o que significa que ele não consegue fazer o que quer e pode sofrer alguma consequência. Mas esse não é o maior dos problemas…

A Falha Crítica

Como descrito pelo próprio livro na pág. 192: a falha crítica é o “desespero dos jogadores”. Nessa mecânica é descrito que:

“Sempre que você obtiver 1 em um dado, isto cancela um dos sucessos obtidos com a jogada. Você deve retirar o dado onde se lê o 1 juntamente com um dados com o qual se obteve um sucesso e ignora-los”.

Aplicando a regra, a falha crítica ocorre quando nenhum dado resultante da jogada (após os resultados 1 retirarem os sucessos) alcança a dificuldade e ainda assim sobrarem um ou mais dados com o resultado 1. Ou seja, você não tem sucessos, mas tem pelo menos um resultado 1 “sobrando” na sua rolagem.

@EDIT.: Esssa regra aparece dessa forma na segunda edição, na terceira edição houve uma mudança que interpreta que a falha crítica de fato não ocorre se tiver pelo menos 1 sucesso, mesmo esse sucesso sendo cancelado posteriormente por um resultado 1, se tornando uma falha normal. Apesar disso era comum uma mistura das duas abordagens, ou mesmo jogando a 3ed era comum manter a interpretação da 2ed, as análises abaixo foram feitas considerando a explicação dada acima que era comumente utilizada nas mesas.

O livro sugere que as consequências nesse caso devem ser desastrosas, acarretando em problemas graves para os personagens. Por fim, ainda nessa sessão, o livro sugere que se as falhas críticas estiverem atrapalhando muito o jogo o narrador pode desconsiderar a primeira falha crítica de cada jogador na sessão.

As consequências de um sistema quebrado estatisticamente

Quem jogou muito as edições antigas, principalmente em crônicas longas em que personagens se desenvolviam e aumentavam seus atributos e habilidades, era comum alcançar paradas de dados grandes somando 8, 9 ou mais dados, e o narrador para manter o desafio começa expontaneamente a propor dificuldades mais altas que a padrão.

Uma sensação estranha dessa época é que parecia que quando você tinha muitos dados para rolar, a chance de ter falha crítica era maior, apesar disso ser contraditório, era verdade! (pelo menos em alguns casos)

Para investigar esse ponto eu comecei a simular rolagens de dados (o link para o código está no final do post). As simulações foram feitas com as dificuldades variando de 6 até 10, e as paradas de dados variando de 1 até 10, cada combinação de parada e rolagem foi simulada 1 milhão de vezes. Os resultados foram os seguintes:


Contra dificuldades 6 e 7 a falha crítica caí quando a parada de dados aumenta, o que é o resultado esperado, pois quanto maior a parada de dados o personagem é mais capaz de fazer algo. Contra a dificuldade 8 a curva já começa a estabilizar, informando que o aumento dos atributos e habilidade influencia pouco na chance de falha crítica.


O sistema começa a quebrar a partir do momento que as paradas de dados aumentam em conjunto com a dificuldade, a curva de probabilidade de falha crítica começa a inverter o sentido com o crescimento da dificuldade.

O sistema quebra mesmo contra dificuldades altas como 9 e 10, nesse ponto a curva já está invertida, isso significa que aumentar os dados aumenta a chance de falha crítica, e isso cria uma enorme dissonância no sistema.



Contra a dificuldade 9 o sistema começa a punir o personagem aumentando a chance de falha crítica conforme os atributos e habilidade crescem, chegando a pantamares de 20%, ou seja, 1 chance em 5 aproximadamente. Chegando ao absurdo de contra a difulcudade 10 a chance de falha critica é maior que a de sucesso com paradas altas.

Afinal por que Vampiros mais poderosos têm mais chances que Vampiros menos poderosos de falhar desastrosamente em tarefas complexas?

Alguns podem julgar que isso não é um problema pois são dificuldades altas, mas é importante lembrar que quando os personagens ficam fortes a dificuldade dos desafios tende a subir proporcionalmente para manter o jogo não trivial. A impressão que dá é que o sistema realmente foi pouco testado na época para situações de endgame, e como essa é uma situação que só começa a aparecer quando os personagens já estão mais evoluídos e enfrentando desafios maiores, esse foi um efeito que provavelmente foi percebido tardiamente, ou simplesmente ignorado.


Arte interna Vampiro a Máscara 3ed, pág. 52

Mas por que a curva de falha crítica se inverte?

Aqui a explicação é até simples, a probabilidade de sair 1 na rolagem de um d10 é constante, sendo sempre 10%, enquanto a probabilidade de um d10 alcançar um sucesso é variável, quanto maior a dificuldade menor é essa probabilidade. Por exemplo, contra a dificuldade 6 cada d10 tem 50% de chance de sucesso, contra dificuldade 9 a chance é apenas de 20%. Isso significa que quando a parada de dados aumenta contra dificuldades altas a curva começa a inverter, cada dado adicionado aumenta a chance de sucesso, mas também aumenta a chance de falha crítica, pois a probabilidade de sucesso de cada dado individual foi reduzida.

Boas práticas comumente ignoradas

Na introdução do capítulo de regras o livro define uma boa prática para os narradores:

“Você deve rolar os dados sempre que o resultado de uma ação seja duvidoso, ou quando o Narrador julgar que existe uma chance do seu personagem falhar.”

Em outras palavras isso significa que a rolagem de dados deve ser resguardada para momentos específicos do jogo que envolvem riscos, mas em muitas mesas era comum rolagens acontecerem o tempo todo para situação mínimas e sem gravidade ou risco narrativo, essa foi uma herança gamista que contaminou toda uma geração devido a outros jogos com propostas e sistemas diferentes.

Ainda nesse capítulo é informado da possibilidade de sucessos automáticos, descritos da seguinte forma:

“Vamos ser francos, às vezes fica muito chato jogar os dados, especialmente quando o seu personagem é capaz de fazer aquela ação "de olhos vendados". E qualquer coisa que agilize o jogo e reduza a perda de tempo é algo positivo.”

O livro deixa claro nessa passagem que a proposta do jogo é evitar rolagens desnecessárias e focar no aspecto narrativo do jogo.

Apesar desses dois pontos, os problemas estatísticos do sistema básico ocorrem contra dificuldades mais altas que não se encaixam nos casos anteriores, pois provavelmente não seriam desafios triviais.

Qual a solução?

Minha primeira sugestão é migrar para o sistema da 5ª Edição que apresenta um design mais coerente do ponto de vista estatístico.

Mas caso você queira se manter nas edições antigas, uma sugestão é aplicar a falha crítica como está explicada na terceira edição, que resolve a ocorrência exagerada de falhas críticas.

Uma outra opção é modificar a regra e aqui vai uma house rule* que remedia esse problema do sistema antigo:

Quando a dificuldade estabelecida for maior que 8, você pode reduzir sua parada de dados em 1 dado para reduzir a dificuldade em 1. Aplicando essa regra no seguinte exemplo olha o que acontece:

O jogador tem uma parada de dados de 9 e vai rolar contra a dificuldade 9, nesse caso a chance de sucesso é cerca de é cerca de 60% e a de falha crítica é de quase 20%. O jogador então reduz a parada de dados para 8 reduzindo a dificuldade também para 8, logo sua chance de sucesso sobe para cerca de 75% e a de falha crítica cai para cerca de 10%.

Com isso o sistema para de punir o personagem com atributos e habilidades altas, a contradição ainda se mantém pois rolando menos dados a chance de algo desastroso acontecer se reduz, mas pelo menos na prática é algo que faz mais sentido, afinal um ancião poderoso ter próximo de 20% de falhar de forma desastrosa é no mínimo curioso.

*Essa house rule surgiu de uma discussão no grupo do Meio-Mundo RPG, foi sugestão do Rafael Carvalho.

Por fim, se quiser uma abordagem mais radical simplesmente abandone a ideia de falha crítica no jogo, muitos sistemas modernos estão simplesmente abolindo isso quando o foco é narrativismo em detrimento do gamismo, o que claramente era a proposta de Vampiro, que nessa época carregava uma enorme dissonância ludonarrativa que nós ignoramos pela possibilidade de viver crônicas no Mundo das Trevas.

Felizmente o tempo passou, e os sistemas se modernizaram.

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Caso tenha interesse no código para simular rolagens, foi escrito em R e está disponível aqui:

🔗 https://gist.github.com/icaroagostino/e2b9e5149d6b75989713eb97b4bce1c5

Os resultados completos das simulações estão nesse link:

🔗 Tabela de resultados

Se você não conhece o sistema atual da 5ª edição, eu fiz um post discutindo alguns aspectos:

🔗 Os dados de fome em Vampiro a Máscara 5ed - V5

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Se você leu até aqui peço que deixe um comentário ali embaixo falando se gostou ou desgostou ou se tem alguma sugestão, muito obrigado =)

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10 comentários:

  1. Ótima matéria!
    Muito boa mesmo.

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  2. Muito boa a matéria , com conteúdo explicativo e ótimos exemplos, continue assim .

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  3. Análise estatística bem fundamentada e com soluções práticas pra resolver o problema de Vampiro: a Máscara. Parabéns pelo ótimo conteúdo!

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  4. Excelente, eu sempre ouvi que quanto mais dado tinha maior a chance de dar ruim, mas vendo suas simulações isso fica perfeitamente nítido quando isso acontece, ótima publicação!

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