terça-feira, 26 de agosto de 2025

Separando as funções: O Triatlo do RPG

Escrito por Renan S

O triatlo é um esporte que comporta 3 atividades substancialmente diferentes: natação, ciclismo e corrida. Embora existam competições individuais dessas modalidades, o triatlo é a junção das três. Cada triatleta executa uma prova por vez; quando o triatleta está nadando, por óbvio, ele não está pedalando ou correndo e assim por diante. 

O Mestre do Jogo (DM), muitas vezes, também exerce várias funções de criação diferentes. É bastante comum a mesma pessoa criar o mundo, as situações-problema e arbitrar o jogo.

Propostas de jogabilidade como Blorb e Novo Simulacionismo, por exemplo, isolam esses momentos de criação. A ideia dessas correntes é que assim como não é recomendável correr enquanto pedala, também não é indicado criar situações-problema enquanto se arbitra o jogo.

No esporte o motivo é óbvio, já no RPG nem tanto. O argumento dos proponentes é que quem cria a situação-problema precisa estar em uma sintonia completamente diferente da mentalidade de quem vai arbitrar as ações dos jogadores na situação-problema.

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Separar esses momentos de criação ajuda a evitar o "mestre onipotente", o mestre que vai modificando a ficção durante o jogo, prejudicando a imersão e o senso de desafio verdadeiro. Quando o mestre assume simultaneamente o papel de criador e árbitro, arrisca favorecer ou prejudicar os jogadores, seja intencionalmente ou não, criando uma experiência que pode parecer artificial ou forçada/inautêntica  ainda que seja verossímil.

O descolamento proposto permite que o mestre mantenha a integridade do mundo de jogo, garantindo que os desafios sejam autênticos e as consequências das ações dos jogadores tenham peso real. 

A mesma pessoa pode ser o árbitro e o designer, é claro, a ideia aqui é que essas atividades sejam realizadas em momentos diferentes, sendo designer apenas na etapa de criação de mundo e na preparação das situações-problema, e árbitro quando estiver executando o que foi preparado (jogando o jogo).

O momento da preparação

Ao criar o mundo, a situação-problema e arbitrar as ações dos jogadores simultaneamente, o mestre se expõe a tentações e a uma indesejada aura de suspeição. Mesmo que não haja nenhuma manipulação intencional, a mera sombra da dúvida pode ser suficiente para macular a experiência do jogo, afinal, na mesa de RPG, tão importante quanto ser honesto é parecer honesto.

Exemplo: Essa armadilha sempre esteve aqui ou foi criada na hora que entrei na sala? Se o mestre está criando desafios durante o jogo, esse tipo de dúvida pode surgir mesmo quando há uma antecipação do perigo.

Você pode pensar que nada garante que o mestre não vá inventar algo, ninguém pode ler a mente dele, e isso é verdade. Mas essa é uma questão que idealmente deve ser discutida independentemente de qualquer proposta.

Se você está aqui lendo teoria de RPG, você tem condições de trazer para sua mesa uma conversa sobre propostas do jogo e, a partir dessa conversa, firmar um compromisso. Que tipo de jogo vocês querem? Altamente improvisado, fiel à preparação ou algum tipo de meio-termo? Como isso vai funcionar na prática? Conversem, combinem e cumpram.

Claro que o mestre pode prometer seguir a preparação e não honrar com sua palavra; nesse caso o problema ultrapassa o RPG.

Ilustração de uma armadilha por asimo

No Blorb e no Novo Simulacionismo, o mestre atua como árbitro, não como adversário nem como marmeleiro. Ele conduz a sessão de jogo a partir do material preparado pelo designer de mundo, que pode conceber cenários sombrios ou acolhedores, e pelo designer de situação-problema, que pode estruturar desafios letais ou triviais.

Os jogadores jogam contra a dungeon, a situação-problema ou até contra o mundo, mas nunca contra o mestre.

Todo mestre precisa improvisar, é fato. Então, o que fazer quando isso se impõe no jogo?

O blorb utiliza as “3 camadas da verdade” para lidar com situações de improviso.

Em linhas gerais, é bom improvisar em cima de bases sólidas e de preferência não improvisar nada grandioso

Um improviso grandiosamente positivo é tão ruim quanto um improviso grandiosamente negativo, pois ambos são tentações que podem gerar a tal aura de suspeição ao redor do mestre.

Para evitar esse tipo de problema, o ideal é que os fatores realmente importantes já tenham sido estabelecidos no momento de criação do mundo e da situação-problema, quando o mestre atuava no papel de designer. 

Durante a sessão, no papel de arbitrar o jogo, os improvisos seriam menores e com tendência à neutralidade. Essa abordagem pode enriquecer a experiência dos jogadores, permitindo que eles sintam que suas escolhas têm consequências reais e as situações foram cuidadosamente elaboradas.

A restrição de improvisar apenas elementos inclinados à neutralidade pode parecer limitadora (e de fato é!); talvez resulte em algumas sessões meio chatas ou em um excesso de preparação. É importante lembrar que todo mestre tem direito a umas sessões meio ruins—vai ficar tudo bem. A transição para essa abordagem pode ser feita gradualmente, com o auxílio das “3 camadas da verdade”, permitindo que o mestre se ajuste gradualmente e sem pressões excessivas.

Essa abordagem visa a consistência e a imparcialidade, fortalecendo a imersão no jogo. No longo prazo, valoriza os momentos realmente marcantes.

Para minimizar os problemas da restrição, uma opção é usar boas aventuras prontas, que oferecem uma base consistente para o mestre se apoiar. Outra possibilidade é incorporar essa postura aos poucos. Você pode ir pegando o jeito sem a pressão de uma transformação completa. 

A separação de funções do mestre, como em um triatlo, exige dedicação e foco em cada etapa. Essa mudança de perspectiva pode fortalecer a imersão e o significado das histórias, criando uma experiência envolvente para todos à mesa. É uma abordagem que não limita a criatividade, como pode parecer inicialmente, mas a direciona para criar experiências mais coesas e satisfatórias. 

Fim. Após a publicação aqui no blog dos textos traduzidos do Blorb e do Novo Simulacionismo, além de texto complementares como "Matrizes de Blorbinidade" e "Sem Ilusões à Prova de Falhas", eu quis escrever esse post para aprofundar alguns pontos sobre esses estilos de jogos, espero que tenha sua utilidade!

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PS: Sempre é bom lembrar o óbvio: a melhor forma de jogar RPG é aquela que funciona para o grupo, e experimentar diferentes abordagens é sempre enriquecedor. Afinal, essa não é a única forma de conduzir um RPG, e cada grupo deve encontrar o estilo que mais lhe agrada. 

3 comentários:

  1. Os textos do BLORB instigam muito a reflexão, parabéns. Quando ela fala "Essa armadilha sempre esteve aqui ou foi criada na hora que entrei na sala?" a pergunta que vem após é "e faz diferença?". Acho que não faz. O que faz diferença mesmo é se essa armadilha respeitou a agência (Ex: foi antecipada) e está coerente com a ficção que apareceu no jogo até o momento. Sobre a "Imparcialidade", acho que ela é impossível de atingir enquanto quem arbitrar for o mesmo que desafiar, ainda que existam ferramentas que ajudem a balizar a atuação do mestre (Ex: Moral, Reação, Tabelas de Encontro Aleatório e etc).

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    1. Fala Rogério! Obrigado por trazer a discussão para a caixa de comentários!

      Concordo que a antecipação pode garantir agência e render ótimas sessões. Já joguei assim, tanto como jogador quanto como mestre.

      Dito isso, hoje penso que faz diferença se a armadilha foi preparada ou improvisada. Explico: nesse estilo de jogo, o foco recai sobre o desafio; superar riscos relevantes e conquistar recompensas.

      Quando o estilo de jogo combinado pela mesa permite que o mestre crie desafios durante a sessão desde que garanta a agência, surge o risco ou a tentação de uma espiral de complicações. Chamo de espiral de complicações a sensação de que, não importa o que os jogadores façam, sempre aparece um novo obstáculo. Mesmo com agência e verossimilhança preservadas, o jogador pode sentir estranheza e, pouco a pouco, a confiança se desgasta.

      Vejo algo parecido em estilos de jogo centrados no combate, em que o mestre vai aumentando o HP do monstro até achar que a luta durou o suficiente e só então decreta a derrota da criatura.

      No caso do jogo com foco em desafio no qual os desafios são improvisados, o mestre pode acabar controlando o avanço do jogador, decidindo que ele só prossegue quando tiver sido suficientemente desafiado, tudo com antecipação. Isso acontece de verdade!

      Por isso considero que faz diferença. E justamente por isso vejo valor em estilos como o Blorb ou o Novo Simulacionismo, que reduzem esse espaço de manipulação e preservam a confiança do grupo.

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    2. Ah e sobre a "imparcialidade" ser impossível enquanto quem arbitrar for o mesmo que desafiar eu concordo! A proposta do texto foi exatamente essa: Separar o quanto for possível.

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