Desde que me interessei pelo movimento OSR sempre ouvi de diversos mestres e criadores de conteúdo a frase “o aventureiro nível 1 na OSR é apenas um camponês com uma espada”. E eu acreditei nessa frase, fui jogando, passando por várias experiências diferentes em diversas mesas e constantemente estranhando essa afirmação.
Anos depois fui mestrar minha própria campanha e mergulhei mais profundamente nos textos dos sistemas ditos OSR e logo de cara eu percebi que tinha alguma coisa errada com essa visão do aventureiro inicial ser alguém despreparado, incapaz e muitas vezes beirando a inutilidade e dependendo da sorte para sobreviver e ganhar alguns níveis.
Aqui nesse post vou me ater a analisar quem é esse aventureiro no principal “chassi” do movimento OSR, a partir dos textos do Old School Essentials e no D&D B/X de 1981, ambos jogos são compatíveis entre si, porém alguns trechos de texto do B/X ajudam a dar uma visão desse perfil de personagem.
Aqui vou apresentar 3 argumentos principais que contradizem essa visão do aventureiro incapaz e levantar uma hipótese do porque essa visão tomou conta do nicho.
1. As estatística de um camponês e de um aventureiro
De forma objetiva temos originalmente no D&D B/X (e consequentemente no Old School Essentials) as estatísticas do “Normal Human” traduzido como Humano Comum e descrito como:
Humanos que não são aventureiros e nem possuem uma classe de personagem. São artistas, pedintes, crianças, artesãos, fazendeiros [...].
CA 9 [10], DV ½ (2 PV), Atq 1 x arma (1d6 ou o dano da arma), THAC0 20 [-1], [...]
Aqui alguns pontos interessantes já aparecem, a descrição destaca que humanos comuns são justamente aqueles que não tem classe de aventureiro, e olhando para as estatísticas temos uma média sugerida de apenas 2 pontos de vida e um valor de ataque de -1.
Comparando com qualquer uma das classes básicas já existe um abismo de diferença, mesmo considerando a classe mais frágil fisicamente, o Mago, ainda assim o humano comum é pior manejando armas (-1 de ataque enquanto o mago teria +0). Sem considerar que o mago nível 1 pode lançar poderosos feitiços, como Sono capaz de colocar um bando de bandidos no chão, ou Míssil Mágico que instantaneamente mataria qualquer humano médio. Estendendo a comparação a classe considerada mais simples, o Guerreiro, temos uma superioridade muito notável em pontos de vida e melhores salvaguardas.
Por fim, a descrição das classes deixa claro que os personagens nível 1 já são treinados em diversos aspectos, usar todos os tipos de armas e armaduras é algo que apenas o Guerreiro entre as classes humanas é capaz de fazer. Clérigos são descritos como humanos que dedicaram suas vidas ao serviço de um deus, e que são treinados tanto em combate quanto no uso de feitiços.
Magos são descritos como humanos que através do estudo e prática aprenderam a manipular a magia. Na página X11 do Expert Rulebook é dito que magos são membros de guildas e treinados por outros magos de maior nível. E por fim, Ladrões são descritos como treinados na arte do roubo e da furtividade, sendo os únicos hábeis em desarmar armadilhas e abrir fechaduras, além de já possuir uma gama de outras habilidades associadas.
Todos esses aspectos distanciam a visão do aventureiro de nível 1 como alguém incapaz ou “apenas uma camponês”, aqui me parece que essa confusão vem de outro aspecto, a letalidade do jogo, mas vamos chegar lá.
2. O que é um herói?
Aqui temos o que eu acredito ser a parte mais relevante no que diz respeito da fantasia imaginada e proposta no jogo, no texto original essa visão está dispersa em trechos isolados, mas a leitura completa do material nos dá algumas direções.
No prefácio do Basic Rulebook, Molday escreve:
“Os jogadores e o Mestre compartilham a criação de aventuras em terras fantásticas onde os heróis abundam e a magia realmente funciona”
e
“Minha investida pegou o dragão de surpresa. Suas mandíbulas titânicas se fecharam a centímetros do meu rosto. Balancei a espada dourada com os dois braços. A lâmina da espada cravou-se no pescoço do dragão e continuou até o outro lado. Com um estrondo que fez a terra tremer, o dragão caiu morto aos meus pés. A espada mágica salvou minha vida e pôs fim ao reinado do dragão-tirano. O campo estava livre e eu podia retornar como um herói..”
Algumas páginas depois:
“Nas regras de D&D (B/X), os indivíduos desempenham o papel de personagens em um mundo de fantasia onde a magia é real e os heróis se aventuram em missões perigosas em busca de fama e fortuna.”
Outro ponto interessante é que no Expert Rulebook temos tabelas de títulos que os personagens conquistam ao avançar de nível, a do Guerreiro por exemplo:
O termo herói aparece no nível 4 e reaparece como Super Herói no nível 8. Porém é notável que o Guerreiro de nível 1 já é chamado de "Veterano". Isso sugere uma ideia de heroísmo construído, e essa é uma visão que é bem desenvolvida no texto Quick Primer for Old School Gaming de Math Fich no tópico “Heroic, Not Super-Heroic” em que o autor discute a letalidade nesse tipo fantasia, e que o heroísmo vem de superar perigos que facilmente levam morte.
A leitura que tenho quando imagino um aventureiro desse tipo de jogo é de alguém corajoso, com capacidades especiais (usar feitiços ou ser treinado no uso de armas e armaduras e etc) e que já deixou para trás há tempos a vida comum para se aventurar em busca de ouro e glória.
3. O dinheiro inicial (ou 3d6 x 10 peças de ouro)
Uma curiosidade que acredito que ajuda a reforçar a ideia da distinção do aventureiro ao “humano comum” é sobre o dinheiro inicial que os personagens de qualquer classe começam.
Durante o processo de criação de personagem é rolado 3d6 x 10 Peças de Ouro, o que em média significa 105 peças de ouro, podendo chegar a 180 em uma rolagem máxima. Isso por si só não diz muita coisa, porém cruzando com a tabela de contratação de Mercenários (pág 59 da edição brasileira do OSE) temos o custo em salário por mês de um camponês médio, que é de apenas 1 peça de ouro por mês.
Apesar de parecer algo talvez aleatório, isso conta sobre a “Cenário Implícito” do jogo, que é como o mundo é descrito através das estatísticas, regras e tabelas, e que existe uma intenção por trás dessas informações, que é propor um tipo específico de fantasia.
Aventureiros de nível 1 em média começam com uma pequena fortuna comparada ao “humano médio”, suficiente para se sustentar por quase (ou mais) de uma década apenas com o resultado de 3d6 x 10 peças de ouro iniciais se levarem uma vida de camponês.
O que isso tudo quer dizer? (e porque você deveria ou não se importar com isso)
Jogar um jogo de fantasia é sobretudo imaginar um mundo diferente do nosso, em que elementos fantásticos coexistem com aspectos da nossa realidade em menor ou maior grau. Muito do que não está explícito nos textos de jogos de fantasia é facilmente preenchido pelo nosso imaginário do senso comum. Ao entrar na OSR e ouvir repetidamente que aventureiros de nível 1 eram personagens descartáveis, inúteis, incapazes ou apenas um “camponês com uma espada” eu me vi repetidamente reproduzindo esse comportamento durante o jogo, estabelecendo uma fantasia em que esses personagens iniciais eram tratados como “zé ninguéns”.
Esse aspecto facilmente apresenta desdobramentos na ficção e na forma como o jogo é jogado, com personagens agindo de forma inconsequente ou vil. Afinal no nível 1 eu sou apenas um “humano comum”, com isso o heroísmo construído começa a desaparecer do jogo, em prol de uma fantasia “mudcore”*.
O meio OSR que tive contato é extremamente contaminado com essa ideia de fantasia suja, de jogar com personagens sem valor, muitas vezes sem nome ou com nomes pejorativos, com comportamento contraproducentes contra o próprio jogo, se virando contra seus próprios companheiros ou npcs sem nenhuma razão além dessa percepção de ficção.
Aqui é importante fazer aquele disclaimer necessário: cada um joga como quer, não existe uma forma correta ou melhor de jogar RPG, mas os jogos OSR (ou parte deles) não são sobre personagens inúteis e descartáveis. Jogar OSR não é sobre um “camponês com uma espada”, é sobre aventureiros corajosos, distintos de humanos comuns e sobre heroísmo construído.
Uma hipótese sobre a incapacidade
O movimento OSR como qualquer movimento de resgate é seletivo, e alguns elementos acabam sendo mais evidenciados que outros. A letalidade desses sistemas antigos é algo que chama muita atenção de quem vem de uma tradição mais moderna, de fato personagens morrem com muito maior frequência nos primeiros níveis comparados a jogos modernos, e é natural de chegar à conclusão de que são personagens “incapazes”.
Essa incapacidade só faz sentido quando comparada a outros jogos de outras épocas, acaba sendo percepção anacrônica da fantasia imaginada. Olhando por uma lógica interna, conforme discutido nos pontos desse post, é fácil perceber que os aventureiros tem desde início uma capacidade muito superior ao humano médio, mas não são super hérois.
Além disso, um dos mais famosos jogos do movimento OSR trouxe a ideia de aventura funil, em DCC (Dungeon Crawl Classics) uma das formas de jogo é de fato jogar com “um camponês com uma espada”, personagens de nível 0 na pele humanos comuns que se veem forçados a se aventurar. O termo funil vem da ideia que nessa primeira aventura, muitos desses personagens vão morrer, cada jogador costuma controlar 4 personagens nível 0, e aqueles que sobreviverem no final ganham seu primeiro nível e se tornam aventureiros.
De alguma forma essa lógica da aventura funil parece ter sido extrapolada para a OSR como um todo, uma ode a alta mortalidade e uma jogatina muitas vezes descrita como “moedor de carne”, quando na verdade olhando os textos dos jogos o que temos é uma proposta de aventureiros corajosos em busca de um heroísmo que será construído por suas conquistas.
O aventureiro OSR ser apenas “um camponês com uma espada” me parece muito mais um mito da OSR que contradiz os textos e o estilo de jogo que a própria OSR tenta resgatar. Se você é adepto a essa visão e se diverte jogando assim, não tem nenhum problema, mas talvez vale a pena experimentar uma nova visão sobre essa fantasia, afinal só existe heroísmo quando algo importante está em risco e o heroísmo precisa ser conquistado.
Nota pós-texto:
*Enquanto estava escrevendo esse texto me deparei em minhas buscas com um post que defende um argumento similar, que “mudcore” é um mito da OSR gerado por publicações apelativas para gerar “susto” em jogadores modernos. Vale a pena a leitura (em inglês):
🔗 https://rghpress.substack.com/p/myths-of-the-osr-part-1-mudcore
Excelente análise. Esse ponto do dinheiro inicial foi muito bem lembrado. Qualquer aventureiro começa com no mínimo dois anos e meio de salário de um camponês no bolso. O lance do título inicial do guerreiro ser "veterano" tb sempre me chamou atenção. Isso e outras coisas que você apontou sugerem mesmo que os personagens de nível 1 são iniciantes só em termos de descer em dungeon e se aventurar nos ermos, mas são bastante experientes e competentes na suas origens.
ResponderExcluirConcordo com o efeito DCC, ele acabou dominando mto esteticamente com uma caricatura mto forte do zero to hero vindo da lama e do aventureiro ingênuo, mas acho que o contraste do personagem do BX com o do D&D moderno é tão grande atualmente, e a ideia vigente de protagonismo tão forte e enraizada, que acaba reforçando a estética do camponês com uma espada na lama.
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